domingo, 4 de dezembro de 2016

A história da "Menina Nua"


Sacado do blogue  "Jardím das delícias"

"Chamava-se Aurélia Magalhães Monteiro e era   conhecida por Lela, Lelinha ou pela “Ceguinha do 9” - para a eternidade   ficará sempre a ser a “Menina Nua” da Av. dos Aliados, estátua que toda a   cidade conhece e aprecia.

Nasceu no dia 4 de   Dezembro de 1910, na freguesia do Bonfim e, pouco tempo antes de falecer,   dizia-me que “tinha sido uma das mulheres mais apreciadas e cobiçadas do seu   tempo...”. Vivia no rés-do-chão do Bloco 9 do Bairro da Pasteleira, numa casa   simples e humilde com flores a enfeitarem a entrada e a sala de jantar."

Um dia convidou-me a   entrar e contou-me um pouco da história da “Menina Nua”.

 «Tinha 21 anos quando fiz de modelo para o Henrique   Moreira, o mestre que fez a estátua: Mais tarde colocaram-me na Avenida dos   Aliados - que belos anos aqueles! Estive duas semanas a “posar” e ainda hoje   recordo com alegria e saudade aqueles momentos de trabalho, pois posso morrer   amanhã que todos ficarão a saber quem era a Lela... Além disso, nessa altura,   dava-me bem com os artistas, era bonita e eles convidavam-me. Andava por toda   a parte, ganhei uns “cobres” com o Henrique Moreira, mas hoje... Resta-me a   consolação de estar ali, de costas voltadas para o Almeida Garrett e de   frente para o D. Pedro IV.»

Perguntei-lhe nessa altura se não tinha havido problemas com   a nudez da estátua - por exemplo, proibições, censuras.
Ela respondeu-me:



- «Bem, sabe que naquela época havia certos sectores que se   opunham claramente e até ficaram escandalizados com a “Menina Nua”. Nós   éramos muito tacanhos e veja bem que há 50 anos as ideias eram realmente   diferentes. Havia o Salazar, a Pide e o povo era mais fechado, mais   religioso. Felizmente o mestre Henrique Moreira conseguiu “levar a água ao   seu moinho” e lá fiquei, de pedra e nua, assim como Deus me botou ao   Mundo...»

Sorriu de imediato, mostrando ainda réstias de um rosto   bonito e de uma boca fina, onde já rareavam os dentes, vítima do peso dos   anos e das canseiras e desgraças da vida. Além disso, imagine uma “moçoila”,   no tempo da “outra senhora”, a expor-se toda nua perante uns homens de tela e   pincéis ou bocados de pedra. Bem... era quase como ser comunista ou mulher da   vida.

Fez-se uma pausa para mandarmos umas “bocas” contra o   sistema do antigamente. Prossegui, perguntando-lhe quando e onde tinha   começado a ser modelo. Antes de me responder, fica um pouco pensativa,   levanta-se e encaminha-se para o seu quarto, vasculha dentro do   guarda-vestidos e traz-me um amontoado de papéis e fotografias.

- «Vá, veja lá tudo isto» - diz-me. (Anotei visualmente uma   série de fotografias, pequenas referências, recordações e memórias da “Menina   Nua”). «De qualquer modo, e se a memória não me falha, comecei com o mestre   Teixeira Lopes, na figura-modelo da rainha D. Amélia. Esta estátua   encontra-se atualmente no museu com o mesmo nome, em Vila Nova de Gaia. Nessa   época tinha muita vergonha. Era uma “moçoila” com 18 anos, bem feita e   bonita. A minha mãe tinha falecido e fiquei mais tarde com uma madrasta, de   quem por acaso não gostava nada; por isso mudei-me para o Bonfim, para casa   da minha santa avó. Que tempos... Nessa altura, iniciei-me como modelo nas   Belas Artes do Porto e lentamente fui-me habituando, até que fiquei mais   descarada...»
Levantou a cabeça e, numa reflexão interior, com risos de   vaidade e inconformismo, continuou:

- «Ah, nesse tempo, punha a cabeça dos rapazes em fogo, era   bonita e não havia ninguém que não me conhecesse como a “Menina Nua”. Depois   passei alguns anos como modelo, andei pelo Norte, pelo Sul e até a Lourenço   Marques (hoje Maputo) eu fui. Fiz de modelo para vários mestres, entre eles:   Acácio Lino, Joaquim Lopes, Dórdio Gomes, Sousa Caldas, Augusto Gomes,   Camarinha e os consagrados Henrique Moreira e Teixeira Lopes. Além da “Menina   Nua”, estou no Buçaco, no Cinema Rivoli, em Lisboa e em Moçambique... E hoje?   Como vê, aqui estou, desde os 43 anos cega, uma vida difícil de adaptação, um   mundo escuro, negro. E mais negro se tornou aquando da morte do meu marido.   Fiquei completamente só. Hoje, passados alguns anos, tenho um casal a viver   comigo, sempre me ajudam a pagar a renda e a fazer-me um pouco de companhia.   Tenho umas ajudas do Centro de Dia da Terceira Idade, ligado ao Centro Social   cá do bairro, onde vou almoçar e lanchar. Enfim, sempre ajuda a passar o   tempo e a velhice. Mas o que eu mais desejava na vida, além de mais dinheiro   para viver, era dos meus ricos olhos...» (Algumas lágrimas correram-lhe pelas   faces, enquanto se preparava para ir almoçar ao Centro.)

Despedi-me dela, tentando consolá-la com frases de carinho e   amizade, mas a vida é um cão que não conhece o dono… Ela despediu-se (nessa   altura), com um bom dia, entrecortado com um sorriso morgaiato, misto de   Ribeira, Bonfim e Pasteleira...

Aurélia Magalhães Monteiro, a Lela, a Lelinha ou a “Ceguinha   do 9”, faleceu no dia 2 de Junho de 1992, com 82 anos de idade. No entanto, a   “Menina Nua” continua viva, fixa e eterna, ali na Avenida dos Aliados,   envolta nos nevoeiros citadinos, perpétua e ardente, nos dramas e vitórias   deste povo.

Do livro "Pasteleira City", de Raul Simões Pinto –   Edições Pé de Cabra – Fevereiro de 1994

Sem comentários:

Enviar um comentário